quarta-feira, 4 de julho de 2012



Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Departamento de Letras


XII Semana de Letras: Pluralidade da Memória

De 23 a 26 de outubro de 2012 no ICHS-UFOP


Primeira Circular

Segunda Circular

Terceira Circular

Ficha de Inscrição

Programação

 
Objetivos
   
Com o título de Pluralidade da Memória, a XII Semana de Letras tem como objetivo a articulação de dois aspectos básicos. De um lado, expor o caráter interdisciplinar das abordagens da memória, voltando-se para o enfoque de suas manifestações no âmbito da literatura, da leitura, da tradução e das práticas discursivas. De outro lado, responder à necessidade de abordar as produções literárias, artísticas e as práticas discursivas com base no enfrentamento crítico das teorizações que emergem das áreas de conhecimento que compõem o âmbito interdisciplinar do Mestrado em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras: 1) Linguagem e Memória Cultural; 2) Tradução e Práticas Discursivas.  

Este objetivo principal desdobra-se no objetivo de estimular a interação entre a pós-graduação e a graduação, levando aos alunos desta última a oportunidade de entrar em contato com a relevância e atualidade do espectro de abordagens sobre a memória e, em particular, com o campo formado pela Memória Cultural. É com base na perspectiva interdisciplinar que a XII Semana de Letras compreende ainda um outro objetivo: o de incluir também professores e alunos dos Departamentos de Educação e História. Deste modo, define-se o público-alvo do evento. É ainda importante realçar que os professores convidados para a XII Semana de Letras são todos estudiosos de contribuição destacada e importância reconhecida em suas áreas. Os objetivos delineados convergem, portanto, para a finalidade de assegurar à  XII Semana de Letras a marca da qualidade acadêmica.

 
Justificativa e relevância

O estudo da memória adquire uma expansão extraordinária ao longo da década de 80, disseminando-se por uma série de disciplinas e campos discursivos. Trata-se de uma expansão que se verifica igualmente na prática de instituições culturais e na mídia, assumindo nesta última um ritmo fortemente acelerado. Nesse contexto, cabe assinalar a importância seminal das reflexões de Andreas Huyssen sobre as manifestações da cultura da memória. O aspecto central dessas reflexões está na formulação de uma mudança decisiva na estrutura da temporalidade do mundo contemporâneo. Em contraposição à noção de “futuros presentes”, elaborada pelo historiador Reinhart Koselleck para caracterizar a orientação da cultura modernista, Huyssen postula o conceito de “passados presentes”, com o qual sintetiza a tendência predominante conferida à memória e ao passado na cultura contemporânea. (Huyssen, Andreas: “Passados presentes: mídia, política, amnésia”, in: Seduzidos pela memória, 2000). No entanto, a argumentação do autor deixa claro, como veremos, que esta nova estrutura temporal ainda carece de estabilidade. 

Huyssen identifica um conjunto integrado de discursos e práticas que se localizam principalmente na Europa e nos Estados Unidos, mas se inscrevem, com variantes, no trânsito global da cultura orientada para a memória.  Os exemplos são os mais diversos: a restauração dos velhos centros urbanos, a “obsessiva automusealização através do vídeo”, a literatura memorialística, romances autobiográficos e históricos pós-modernos, a difusão das práticas memorialísticas nas artes visuais, as comemorações e memoriais, o crescimento dos enfoques da memória dentro da historiografia. Forma-se, desse modo, um conjunto integrado que Huyssen procura compreender em termos de “tramas secundárias”, embora faça a ressalva de que tais manifestações são suficientes para configurar uma orientação temporal completamente distinta daquela do paradigma modernista. A trama fundamental está constituída pela memória do Holocausto, também sujeita à expansão global, na medida em que é apropriada pelos discursos traumáticos da memória com a finalidade de expor as práticas genocidas do mundo contemporâneo. Convertido em “lugar-comum para os traumas históricos”, o Holocausto (Shoah) ingressa no que Huyssen chama de “paradoxo da globalização”. Nesse processo de apropriação, o Holocausto perde sua referência histórica precisa. Ao mesmo tempo, o emprego do discurso do Holocausto torna possível também o entendimento de “situações locais específicas”. Uma tal  configuração pode implicar tanto o fortalecimento retórico de alguns discursos de memória traumática, quanto o risco de que a metáfora do Holocausto possa “bloquear a percepção de histórias especificas”. 

É ainda em termos de paradoxo que Huyssen vê a cultura contemporânea, aprisionada pela coexistência e tensão entre a preocupação com a memória e o “pânico público frente ao esquecimento”, ambos conduzidos pelas constantes transformações das novas tecnologias de informação, pela mídia e pelo consumismo. É esse quadro que produz as “estratégias de rememoração pública e privada”, impotentes diante da desestabilização do próprio passado que a “indústria cultural musealizante” engendra pela aceleração incessante da produção e substituição de imagens, espetáculos e eventos. Aí está para o autor o drama cultural contemporâneo que inclui a experiência de instabilidade e o sentido da obsessão pela memória: “a crescente necessidade de uma ancoragem espacial e temporal em um mundo de fluxo crescente em redes cada vez mais densas de espaço e tempo comprimidos.”. 

Pode-se dizer que a interpretação de Huyssen contribui para o desvendamento de uma situação histórico-estrutural que cria as condições de possibilidade para a construção das várias teorias da memória no domínio da sociedade e da cultura. Dentre elas, cabe destacar a teoria da memória cultural de Jan Assmann, pela consistência de seu caráter inovador, força explanatória e capacidade de articular várias esferas da memória. O desenvolvimento das concepções de Assmann exigia a reformulação crítica da noção de “memória coletiva” de Halbwachs, limitada à memória formada pela experiência vivida na interação de indivíduos dentro de vários grupos sociais. Essa crítica apresenta-se também, de modo independente, em Paul Connerton, como um requisito para a elaboração de seu conceito de memória social, cuja novidade e fecundidade residem na investigação da “memória incorporada”, marcando sua diferença em relação ao paradigma da “memória inscrita”, de caráter linguístico, e transmitida pela escrita (“A Memória Social”, in: Como as sociedades recordam, 1999) Já Paul Ricoeur, em A Memória, a História, O Esquecimento (2007), questiona radicalmente a rasura da memória individual efetuada por Halbwachs, ao mesmo tempo em que propõe a noção de “próximo” como uma instância mediadora entre o eu e os coletivos.

Assmann recusa a perspectiva de Halbwachs em Memória Coletiva, uma vez que esta se mostra confinada ao domínio horizontal, sincrônico de comunicação e ao ciclo de aproximadamente três gerações. Na elaboração teórico-metodológica de várias manifestações e níveis da memória, realizada por Assmann, a memória coletiva de Halbwachs é redefinida como “memória comunicativa” (Jan Assmann: “What is Cultural Memory?”, in: Religion and Cultural Memory, 2006). Vinculado às sociedades com escrita e abrigando a interação entre psique, consciência, sociedade e cultura, o conceito de memória cultural de Assmann incorpora um eixo diacrônico formado por uma profundidade temporal, capaz de alcançar passados longínquos. Assmann estabelece a diferença crítica entre memória cultural e tradição, uma vez que esta se prende a uma dinâmica restrita e a um controle consciente a serviço de uma transmissão orientada pela continuidade. Outra diferenciação importante separa a memória cultural da “memória de ligação”, na medida em que esta última pode ser reduzida à instrumentalização do passado e à identidade de pertencimento. Embora possa conter aspectos da memória de ligação, a memória cultural abre-se para a consciência de tempos culturais remotos, permitindo um sentido de simultaneidade e tornando possível a identificação com formas culturais desse passado longínquo. Trata-se de um novo tipo de identificação, de sentido liberador, capaz de produzir o distanciamento face a ligações culturais familiares e desestabilizar identidades consolidadas.

O contraste crítico com a tradição faz-se acompanhar ainda pelo distanciamento em relação a qualquer pacto com a fixação do canônico. Assim, na memória cultural das sociedades escritas, “o significado transmitido, traduzido em formas simbólicas, expande-se em vastos arquivos dos quais só algumas partes mais ou menos limitadas, embora centrais, são efetivamente requeridas, habitadas e cultivadas”. Aqui está o que Aleida Assmann classifica de “memória funcional”, contrastando-a com a “memória armazenada”, composta por significados e formas simbólicas colocadas à margem. Longe de ser apenas formal, essa diferenciação conduz a uma dinâmica em que a fronteira entre a “memória funcional” e a “memória armazenada” desloca-se constantemente. Nessa dinâmica, consuma-se a transgressão do canônico e a emergência do rejeitado. A memória cultural implica, portanto, uma dimensão de reinvenção, de cruzamentos inovadores e de retorno do rejeitado, de inter-relação jamais pacificada entre o escolhido para ser memória e o que se destina ao esquecimento.

Como Astrid Erll & Ansgar Nünning assinalam em “Where Literature and Memory Meet” (Literature, Literary History and Cultural Memory, 2005), embora os conceitos de memória fossem onipresentes nos estudos literários, a abordagem teórica das dimensões da memória (memória individual, memória social, memória cultural) e de suas inter-relações nas obras literárias só se delineou e consolidou nas duas últimas décadas, aproximadamente. Constituídas por um amplo espectro de linhas de interesse, essas abordagens incluem, por exemplo, as representações da memória na literatura, a literatura como veículo da memória social ou coletiva, o cânone e a história literária como memória institucionalizada. Em Aleida Assmann (Cultural Memory and Western Civilization, 2011), o enfoque da literatura integra-se particularmente à perspectiva da memória cultural. A referência às obras literárias e sua análise percorrem as três partes em que se divide o livro: funções, mídia, armazenamento. Em Memory and Literature (1997), de Renate Lachman, é a propria dinâmica da construção da intertextualidade que se transforma no conceito do “texto como memória”, isto é, um espaço mnemônico constituído por múltiplas interligações que se desdobram entre textos concretos. Esse entendimento da literatura como um ato de memória, de acordo com Wolfgang Iser no prefácio ao livro de Lachman, não se reduz a uma representação da memória cultural. Antes, “realiza as operações da memória, abrindo assim um meio de acesso para observar como a cultura se manifesta e talvez até como ela acontece”. Concepções desse teor não emergiram apenas recentemente. Bem antes, como se sabe, Mikhail Bakhtin expôs as relações decisivas entre memória e discurso (enunciado), memória e literatura, detendo-se especialmente no conceito de memória do gênero literário. Além do domínio específico da literatura, torna-se imprescindível uma rápida alusão a Aby Warburg (1866-1929) e à ampla ressonância de sua concepção de uma memória social que atravessa a história da arte para explicar o retorno de símbolos e formas artísticas da Antiguidade – uma “vida póstuma” – em artistas do Renascimento, para além de qualquer intenção de uma reutilização consciente.

Andreas Huyssen, ao abordar o entrelaçamento entre memória e esquecimento, cita a fórmula de Freud de que a memória é apenas uma forma de esquecimento e o esquecimento, uma forma de memória escondida. Ao fazê-lo, transporta a análise freudiana do processo psíquico de recordação, recalque e esquecimento no indivíduo para a sociedade de consumo de nossa época, considerando-o como “um fenômeno público de proporções sem precedentes”. O par indissolúvel formado por memória-esquecimento, por sua vez, projeta-se na literatura. Em Lete – Arte e crítica do esquecimento, Harald Weinrich “analisa as formas mais notáveis que revestem o esquecimento no desenrolar da história cultural, da Antiguidade aos nossos dias”, concentrando-se, sobretudo, em exemplos da literatura europeia. Ao sublinhar o entrelaçamento de memória e esquecimento, Weinrich recorre a uma anedota da Antiguidade contada por Cícero, aproveitada depois pelo autor em uma elegia. Simônides, o inventor da “arte da memória”, propõe ensiná-la a Temístocles, político notável e vencedor da batalha naval de Salamina (480 A.C.), para que ele pudesse “recordar-se de tudo”. Há duas versões da resposta de Temístocles. Na primeira, ele teria dito que preferia esquecer tudo que quisesse a recordar tudo que fosse possível. Na segunda, Temístocles teria afirmado que não se interessava pela arte da memória, mas sim por uma arte do esquecimento. Weinrich esclarece ao leitor que Temístocles possuía uma memória natural admirável e retinha na lembrança mais do que desejava. Essa anedota, vinda da Antiguidade e muitas vezes contada, permite-nos vislumbrar a profundidade temporal e a dinâmica da tensão entre memória e esquecimento, ambas inscritas no conceito de memória cultural.